sábado, 4 de março de 2023

    No desespero pela vida tropecei no balde que repousava no topo da escada, caindo e rolando enquanto os leves pés esqueléticos dela desciam degrau por degrau. No estábulo, sujo de estrume e feno engatinhei desesperadoramente até o ancinho de feno na tentativa de me defender engalfinhando-a.

    Do momento que virei até o instante que ergui os olhos, a conta já estava perdida. Ela estava com a larga foice de gadanho que repousava ali do lado da escada, perto da cocheira onde Lisandra assustada batia descompassado os cascos no chão de pedra enquanto relinchava. Lancei o ancinho na direção dela que pelo desespero bateu de lado e então corri descontroladamente na direção das portas do celeiro que esqueci entreabertas.

    La fora, no curral a chuva solapava o chão que já embebido em lama e estrume parecia uma areia movediça. Não consegui alcançar o fim do cercado do curral quando do seleiro vi ela sair, montada em Lisandra e com gadanho para o alto, vinha em minha direção no intento de minha alma ceifar. A corrida para minha esquerda abriria um enorme espaço para que num golpe direito ela dragasse a minha alma, infelizmente paguei a conta de outra forma, zarpei na direção do único mal irremediável e quando estava quase de frente com a mula, mergulhei na lama para o seu lado esquerdo.

    A morte não enxerga raciocínio, apenas emoção. E num golpe errado, ceifou diante de si mesma o pescoço de Lisandra. Decepcionada, a cabeça preta de Lisandra jazia no chão e olhava para a morte montada naquele corpo quadrupede decapitado. Enquanto o sangue escorria pelas suas narinas, o branco dos olhos da mula indicavam que ela também tentava me olhar mas não conseguia. Agora não fazia mais sentido. Lisandra era tudo pra mim. Desde que me excomunguei, dediquei a minha vida a pagar pela maldição que a condenei, agora nem a morte me quer.

    Pensei que ela abandonaria o resto do corpo assim que essa visão terminasse, ele cairia falecido no curral. Mas não, a morte desceu da mula ficou com gadanho para ela, acoitou Lisandra na anca que num salto escapou do curral e partiu ensanguentada para a mata a dentro. E num piscar de olhos, sumiu.

    A chuva se tornou uma garoa fina então me engatinhei até a cabeça de Lisandra. Com lágrimas nos olhos recolhi a cabeça da mulher que trocou o primeiro olhar mundano comigo naquela velha paróquia. Morbidamente foi como a primeira vez que a vi, e num lugar tão secular construído por homens, me achei vislumbrando o céu. Abracei a cabeça da mulher que amei e amaldiçoei este fim tão triste. Por um instante achei que havia a condenado, mas na verdade eu havia a libertado.